terça-feira, 16 de agosto de 2011

Valsinha

Às vezes a vida prega umas peças... Às vezes ela nos dá umas chacoalhadas daquelas bem abruptas, e nos faz enxergar coisas óbvias, mas que de tão óbvias não nos eram reveladas.

Eles eram um casal de meia idade, já juntos há alguns bons anos, e tinham uma vida mediana, uma vidinha morna, já absorvidos pela mesmice quotidiana, e com isso, agiam como máquinas. Respeitavam-se, provavelmente se amavam, mas era tudo aquela coisa trivial. De manhã ele levantava, passava o café enquanto ela colocava pães na torradeira, e eles mal trocavam uma palavra durante todo esse ritual. Depois, ele sentava metodicamente lendo o jornal enquanto tomava seu café amargo.

Amargo... Esse era o adjetivo que melhor o definia. Ele era amargo, e isso sufocava sua companheira. Sufocava porque ela era dessas meio emotivas, quiçá sentimentalóide, que gostava de poesia, e inclusive já havia escrito muitas delas quando jovem. Mas depois, casaram-se, e a vida se encarregou de lhe deixar tudo meio-termo, levar seus suspiros, emoções e a sua inspiração poética. Ela não escrevia mais... Ela não se rasgava mais, não se jogava aos pés dele dizendo-se embriagada de paixão. Não porque não se sentisse ainda embriagada de paixão, mas porque não suportava a indiferença dele diante de alguém que se rasgava... Assim, entre se rasgar e calar optou por calar. Resignou-se... Resignação é o remédio azedo que tomamos dia após dia...

Por outro lado, ele não a presenteava mais com poemas e canções, versos, cantigas e cantadas. Nunca mais leram poesia juntos, nunca mais se enfeitaram para um jantar especial, ainda que dentro de casa. Ela sofria, sem perceber. Ele era amargo... Ele maldizia a vida, não suportava o trânsito, o chefe, o trabalho, o salário baixo, o aluguel alto, a pia entupida. Tudo era caos, tudo era pesado. Ela estava cansada... Ele também...

Um dia, porém, o sono tranqüilo do nosso jovem e velho amargo foi perturbado por um sonho inquietante. Ele, que raramente sonhava, teve pela primeira vez um dos sonhos mais realistas da sua vida. Sonhou que sua mulher o deixava. Ela picotava um a um todos os livros e poemas que eles já haviam lido juntos, chorava, esbravejava. Queria amor, e não resignação. Queria o quente, não o morno. Ela saia pela porta sem olhar pra trás, e ele sentiu, de repente, aquele vazio avassalador. Aquela dor... A casa vazia. A cama vazia, a sala vazia, a vida vazia.

Acordou aos prantos. Ela não estava deitada ao seu lado. “É o fim?”, pensou desconcertado... Caminhou lentamente, e ainda zonzo, até a cozinha. Ela estava lá e preparava o café... “Você se atrasou! Nunca vi não acordar com o relógio. Tome logo seu café, ou via pegar um trânsito infernal, e me ligar esbravejando e maldizendo na hora do almoço...”

Calado, taciturno, ele tomou seu café amargo e foi para o trabalho. Mas não teve paz um só momento do dia, pois aquele sonho tinha sido tão avassalador, tão chocante, que ele estava perturbado. “Ela é o que tenho de mais precioso nesta vida”, pensava. “Não posso perdê-la... Não posso... Eu não suportaria...”

As horas demoraram a passar e, ao final de mais um dia de trabalho, ele se sentia diferente. Ele sentia que a amava de um jeito tão visceral, tão puro... E ela provavelmente não sabia disso. A indiferença do dia a dia soterrou aquele amor que um sonho mostrou, como dedo que se crava na ferida aberta: ei! Você ainda a ama! E não é pouco!

Era quinta-feira. Ele lembrou de quando se conheceram, há tantos anos... Foi em uma festa, um baile que acontecia na praça da cidade, toda última quinta-feira do mês, e aquele dia era justamente a última quinta feira do mês... Era aquele dia!

Parou na floricultura e comprou todas as rosas que pôde, um buquê enorme. Comprou chocolates, comprou vinho. Quanto tempo fazia que não dava um presente a ela? Já não tinha idéia. Chegou em casa sorrateiro, sorridente. Entrou, e encontrou-a sentada no sofá, lendo um livro. Ela levantou os olhos e teve um susto, pulou do sofá sem conter a emoção de ver tantas flores, e ver seu amor, aquele seu amor de tão longa data, com aquela mesma cara, aquele mesmo cândido e ingênuo sorriso que tinha quando se conheceram, aquele sorriso que ela jurava ter ficado soterrado em tanta amargura quotidiana, ele existia!

- Meu amor! Hoje é a última quinta-feira do mês, e é dia de festa. Queria fazer uma coisa diferente... Rememorar um tempo tão lindo que já passamos. Vamos dançar?

Dando um basta à monotonia semanal, os dois tiraram a roupa caminhando pela casa, e se trocaram juntos, descartando cada peça de roupa em um cômodo diferente, provando combinações e mesclando peças diferentes. Exatamente como faziam anos antes, conversando e se entrelaçando enquanto escolhiam a roupa que usariam para ir ao cinema.

Vestido decotado, fita no cabelo, perfume, lápis, maquiagem. Ela realmente estava bonita! Os dois deram-se os braços e foram juntos, lado a lado, rumo à praça, onde dançaram a noite inteira, onde se beijaram intensa e loucamente, onde cantaram o amor que sentiam um pelo outro até que ficassem completamente roucos. Voltaram para casa descalços, de mãos dadas... Dormiram tão abraçados que quase sufocaram. Dormiram até acordar, mandaram às favas o despertador, a sexta-feira, o trabalho, a amargura, o caos... Dormiram... Juntos... Entrelaçados... Até que o dia amanhecesse em paz...


Valsinha
(Chico Buarque e Vinícius de Morais)

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar

E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar


E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz...

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