quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Santa Chuva

A solidão de um dia cinza e molhado. Era essa a companhia que ele tinha naquele momento, e tudo remetia ao mesmo pensamento cíclico e involuntário: desde o livro que ele tentava inutilmente ler, sem conseguir avançar mais de meia página, até o cinzeiro branco de canto trincado. Era ela, era aquela agonia sufocante de não saber exatamente como e nem onde acabou aquilo que pra ele já foi um grande amor. O pijama que não tirara do corpo desde sabe-se lá que horas refletia a angústia de estar perdido, completamente perdido em si mesmo.

Pensava maquinalmente na candura daquele olhar, na doçura daquele par de olhos que o fitavam timidamente, subindo e descendo, como quem pede desculpas por olhar, ao mesmo tempo em que não consegue parar de fazê-lo. Lembrava ainda da vontade insana que ele teve de beijá-la loucamente desde a primeira vez que se viram. Lembrava do seu corpo quente, lembrava dos abraços, dos braços, dos passos - juntos, sempre juntos. Sentiu uma fisgada no peito enquanto atirava pela janela do apartamento a bituca do oitavo cigarro fumado desde que deixou a cama, e bebia mais um gole de café na caneca branca, que era a preferida dela. Entregou os pontos: ele se importava, e era inútil tentar fingir que não. "Eu ainda amo", balbuciou com o olhar distante, os cabelos desgrenhados, vento na cara, cheiro de nicotina e suor. Ele era um trapo, e sabia disso.

Deitou na cama e resolveu ligar a televisão, por impulso, por costume, por inércia. Não esperava nada além de um barulho de fundo que pudesse, talvez, tirar aquele ar fúnebre do ambiente. Pegou o controle remoto enquanto acendia mais um cigarro. Estava passando o noticiário da tarde, uma reportagem qualquer informava que a expectativa de vida do brasileiro havia aumentado. E a angústia? Pensou: deviam fazer uma pesquisa que medisse a angústia e a amargura desse povo, cada vez mais imerso eu sua própria arrogância e solitário. Foi um pensamento projetado, na verdade. Afinal de contas, esse era ele - e não o povo, coitado! Ele era uma pessoa amarga, e sabia disso, podia sentir isso a cada tragada de cigarro e gole de café.

Uma mulher tão impecavelmente produzida que parecia artificial: era a previsão do tempo, com um mapa enorme ao alcance das mãos, a voz fria e monótona anunciava para os próximos dias os temporais mais fortes dos últimos dez anos.

"O mundo vai desabar!!", gritou a plenos pulmões. Encheu o peito e gritou "O mundo vai desabar!!!!!"

Ele estava sozinho, não havia ninguém naquele apartamento que pudesse ouví-lo, e nem mesmo os vizinhos prestariam atenção naquele lamento. "O mundo... Vai desabar...". Seus olhos encheram de lágrimas, e a caneca branca com coração vermelho veio ao chão, espatifando-se em um milhão de pedaços. Era como ele se sentia: em mil pedaços. Pegou o telefone, foi mais forte do que ele, passou por cima do orgulho, do bom senso, do amor próprio, e ligou pra ela... Ele não sabia exatamente o que queria, não conseguia pensar em nada além de simplesmente poder ouvir a voz dela, que no terceiro toque atendeu.

- Alô? (era aquele mesmo "alô" de sempre, aquela mesma entonação. Mas um pouco mais frio. Talvez ela tivesse visto que era ele ligando, vai saber...)

-Oi... Sou eu...

-Sim?

-É que... Bem... Eu... Vi agora na televisão, vai cair o maior toró! Fiquei preocupado... Você disse que iria pra casa dos seus pais, e a estrada aí pra esses lados é tão perigosa... Pensei que seria bom ligar... Você tá bem?

-Ah, não tem porque se preocupar. Estou bem, e estou voltando pra casa já. Tenho um compromisso amanhã e...

- Passa aqui em casa? 
Ela ficou muda pela eternidade de alguns segundos...

-Olha... Eu acho que não temos mais nada para conversar, eu estou super cansada... Não seria...

-Por favor. Você vai ter que pegar as suas coisas uma hora mesmo, passe agora. Aproveite que você está na rua. Eu só preciso lhe ver. Entrego tudo, olho nos teus olhos, dou um último abraço de adeus, e pronto. Cada um pro seu caminho, lembra? 

-Eu sinceramente preferia que você simplesmente mandasse entregar isso tudo na casa da minha irmã

-Tem medo de me ver agora?

-Não é questão de medo ou não medo, pelo amor! Mas, pra quê? O que tinha que ser falado já foi falado, e...

-Covardia. Isso é pura covardia...

-Olha, não tenho medo e nem covardia, mas também não preciso provar nada pra ninguém. Mas vamos resolver isso logo, vai. Não sei se por sorte sua - ou azar meu - mas o fato é que você me ligou exatamente no momento em que estou passando pelo seu bairro e...

-Nosso bairro!

-Não, querido, SEU bairro. Eu me mudei daí, lembra? Então, tenho mesmo que pegar alguns livros que ficaram aí, então vou subir, rápido. Mas não tenha nenhuma esperança de...

-Eu não sei o que significa "esperança". Estou esperando. Pode subir, a porta está aberta, não se preocupe, não tenho mais nada pra pedir ou perguntar...

-Você não muda mesmo, né? Tchau.

Desligou com um clique seco.

Ele deitou na cama e acendeu o décimo cigarro. Soltava a fumaça pela boca, vagarosamente, enquanto tentava imaginar desenhos e formas que se dissipavam pelo ar. Achou que viu um pássaro, mas que depois virou um peixe, e por fim, não virou mais nada.

Poucos minutos depois (para ele, pareceram horas, mas o cigarro ainda estava pela metade) ela chegou, entrando esbaforida pela porta, foi até a porta do quarto e viu aquele traste deitado na cama. A barba por fazer, os cabelos bagunçados, o pijama sujo e o cigarro na mão, fumando e olhando para o nada como quem pede piedade sem saber por que.

-Voltou a fumar?

-Foi... Alguma coisa tem que preencher o meu vazio, ainda que seja a fumaça suja de um Marlboro.

-Que horror! Onde estão meus livros? Eu quero ir antes que a chuva despenque...

Ele a interrompeu com um olhar fulminante, do fundo dos olhos dele ao fundo dos olhos dela.

-Se você soubesse o quanto eu rezei pra poder ouvir a sua voz, ainda que pela última vez.

A cólera tomou conta daquele rosto que sempre lhe fora tão calmo. Os olhos claros de repente se transtornaram, como se alguém tivesse atingido neles uma ferida dolorida, ela ficou vermelha, e aquelas poucas palavras ditas por ele despertaram nela uma ira inarrável:

-Qual é o seu problema? Você é idiota? Débil mental? Por que diabos você me chamou até aqui? Pra ver que você não tomou banho? Ou que voltou a fumar? Não vê que nada mudou na sua vida, que nada aconteceu a não ser assumirmos algo que já viviámos há tempos: o fim de um relacionamento? Diz, por que você sofre? Por amor? Ou será medo de ficar sozinho? Cadê aquela outra vagabunda da semana passada? Vocês me pareciam tão felizes andando de mãos dadas pela rua... Cadê? A sua saudade tem algum botãozinho de liga e desliga? Ou ela já se cansou desse seu jeito sentimentalóide piegas e vazio? E que merda é essa de dizer que rezou pra ouvir minha voz? Desde quando você reza? Não era ateu? Você é ridículo, se porta como vítima, esquece que você fez. VOCÊ! Em que mundo você vive, qual é o povo que vai achar normal o que você me fez comigo? E agora realmente acha que você é a vítima? Quer saber, empacota meus livros e manda por correio para a casa da minha irmã. Se não quiser também, jogue-os fora, faça uma fogueira, enfia na bunda! Mas some da minha vida. E pode devolver essa merda dessa televisão também, porque ela é minha, eu comprei, eu paguei, e não vou deixar de presente pra animar seu cafofo decadente enquanto você traz suas vagabundas pra cá. Eu vou embora... E de vez, entendeu? Some da minha vida!

Correu para a sala, abriu a porta. Vociferou "Não existe o menor motivo para chorar por um amor que já morreu, entendeu? MORREU! E eu cansei da sua falsidade!" Bateu a porta com violência. A chave caiu no chão. Ele chorava, enquanto acendia o décimo primeiro cigarro...

Santa Chuva
(Marcelo Camelo)
Vai chover de novo,
deu na tv que o povo já se cansou
de tanto o céu desabar,
e pede a um santo daqui
que reza a ajuda de Deus,
mas nada pode fazer se a chuva quer é trazer você pra mim,
Vem cá que tá me dando uma vontade de chorar,
Não faz assim, não vá pra lá,
meu coração vai se entregar à tempestade
Quem é você pra me chamar aqui se nada aconteceu?
Me diz, foi só amor ou medo de ficar sozinho outra vez?
Cadê aquela outra mulher?
Você me parecia tão bem
A chuva já passou por aqui, eu mesma que cuidei de secar
Quem foi que te ensinou a rezar?
Que santo vai brigar por você?
Que povo aprova o que você fez?
Devolve aquela minha tv que eu vou de vez
Não há porque chorar por um amor que já morreu,
deixa pra lá, eu vou, adeus.
Meu coração já se cansou de falsidade

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